Por Renata Souza, Ibis Pereira e David Gomes *
Nas teses sobre o conceito de História, Walter Benjamin ensina que em momentos de crise uma lembrança pode surgir como um clarão que afasta as adversidades de um tempo ruim. A partir do passado, podemos ativar a centelha da esperança. Evocar os acontecimentos e preservar a memória das vidas dos homens e mulheres que nos precederam são tarefas essenciais para o direcionamento das sociedades humanas. A História é um poderoso recurso contra a desesperança, porque abre à imaginação o vislumbre do que poderia ter sido e não foi. No ano do centenário de seu nascimento, recordar Leonel de Moura Brizola é retomar a sua utopia da emancipação do povo brasileiro; o sonho de construir um país livre da fome, da miséria, da estupidez e da brutalidade; um país onde a educação, a fraternidade e a Justiça possam ser os fundamentos de uma nova ordem política e social.
Leonel Brizola nasceu em 1922 no distrito de Cruzinha, zona rural do Rio Grande do Sul. A região atravessava grandes instabilidades. Os entreveros vinham de longe; ao menos desde a Revolução Farroupilha, seguida da Federalista no final do século 19. Em janeiro de 1923, explodiu uma revolta sob liderança de Assis Brasil, contra o governo estadual. A guerra civil duraria onze meses até a derrota dos rebeldes e a assinatura do pacto de Pedras Altas. Brizola perdeu o pai, assassinado no curso daquela conflagração. É provável que esse meio social combativo, marcado por desavenças e reivindicações de justiça social, tenha exercido influência sobre o jovem Leonel, contribuindo para moldar o perfil que o tornaria conhecido, a conjugar intrepidez, sagacidade e comando. Nunca saberemos ao certo.
Adolescente, Brizola deixa o interior de seu estado natal e ruma para Porto Alegre. Foi engraxate e ascensorista. Fez curso técnico e faculdade de Engenharia civil. Muito jovem, começa a sua trajetória política na esteira do queremismo, logo depois do afastamento de Getúlio Vargas, em 1945. Foi deputado estadual em 1947; secretário de obras em 1952 e, na sequência, deputado federal com mais de 100 mil votos. Em 1955, disputa a prefeitura de Porto Alegre e aos 34 anos se elege prefeito. Graças a sua administração, no final do primeiro ano de governo já era o principal candidato ao executivo gaúcho. É no governo do Estado que desponta como uma liderança nacional. Enfrenta o capital estrangeiro nacionalizando empresas norte-americanas; é pioneiro na reforma agrária, criando o MASTER, embrião do MST; constrói mais de 6 mil escolas de tempo integral.
Mas, é durante o episódio que ficaria conhecido como a Cadeia da Legalidade, que Brizola protagoniza um dos momentos grandiosos da nossa história. A Legalidade foi um épico. Do Palácio Piratini, Leonel Brizola comandou a defesa da ordem constitucional contra a tentativa de um golpe, liderado pelos comandantes militares. À frente da conspiração, o próprio ministro da Guerra. Os militares se insurgiram contra a posse iminente do vice-presidente da República, João Goulart, diante da renúncia do presidente Jânio Quadros. Vencida aquela insubordinação, João Goulart tomou posse em setembro de 1961.
O período seria marcado por muitas tensões que culminaram na derrubada do governo em 1964. Com a ditadura veio a perseguição e o exílio. Foram 15 anos afastado do Brasil, até retornar em setembro de 1979, quando Brizola fundou um partido e fixou residência no Rio de Janeiro para disputar a primeira eleição direta para o governo estadual, após o golpe. Naquele 15 de novembro de 1982, mais de 58 milhões de brasileiros e brasileiras compareceram às urnas. Estava em jogo a chefia do Executivo de 22 estados; um terço do Senado; as cadeiras da Câmara dos Deputados e das Assembleias Legislativas estaduais, além das prefeituras (vereadores e prefeitos) de mais de 4 mil municípios. Foi uma eleição que marcou a memória política carioca e fluminense.
Leonel de Moura Brizola governou o Rio de Janeiro duas vezes: de 1983 a 1987 e de 1991 a 1994. De 1982 até sua morte em 2004, disputou sete eleições: duas para a Presidência da República, uma para a Vice-Presidência, duas para governador do estado, uma para prefeito da Cidade do Rio de Janeiro e ainda uma para o Senador. Neste ano do bicentenário da independência brasileira, ano de renovação do cenário político, em um país tão dividido e polarizado, sua memória pode ajudar a renovar nossa crença na construção de uma alternativa para o Brasil pautada em três aspectos fundamentais: soberania nacional, anti-imperialismo e antirracismo.
Em um momento de franca ascensão das lutas antirracistas no Brasil e de crise política e econômica generalizada no Rio de Janeiro, torna-se fundamental buscarmos experiências bem sucedidas de luta e políticas públicas dos governos Brizola para a população negra e para o Estado do Rio de Janeiro como um todo, construídas por um time histórico e imprescindível para o movimento negro brasileiro como Abdias Nascimento, Carlos Alberto Caó, Lélia Gonzáles, Nazareth Cerqueira, entre outros. Aliás, a preocupação de Brizola com a superação do racismo no Brasil vem desde antes de ele assumir o Governo do Estado do Rio de Janeiro. Já na Carta de Lisboa, documento fundacional do PDT de 17 de junho de 1979, a questão racial já aparecia com destaque. O manifesto determinava que os trabalhistas brasileiros iriam“buscar as formas mais eficazes de fazer justiça aos negros e aos índios que, além da exploração geral de classe, sofrem uma discriminação racial e étnica, tanto mais injusta e dolorosa .”
Essa perspectiva antirracista se materializou de forma transversal entre as diversas Secretarias de Estado e suas políticas públicas. No campo da educação foram criados 506 Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs, popularmente conhecidos como Brizolões. Os CIEPs foram construídos em favelas, beira de estrada, ou seja, onde o povo pudesse acessar esse projeto excepcional de Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer. As crianças entravam pela manhã e só saiam no final da tarde e tinham direito a três refeições, biblioteca, dentista, acompanhamento psicológico, educação de qualidade e dignidade. Do CIEP, surge a ideia de construção de uma casa para abrigar o maior espetáculo da Terra, o carnaval. E assim foi feito, a Passarela Darcy Ribeiro (Marquês de Sapucaí) foi construída como a maior escola do Brasil que durante uma semana do ano empresta sua estrutura para receber o desfile das Escolas de Samba. Educação e cultura unidas.
Outros exemplos importantes podem ser observados no campo da habitação e da água tratada. Dezenas de milhares de títulos de propriedade, além de unidades habitacionais foram entregues para moradores de favelas durante os governos Brizola no Rio de Janeiro. Na contramão do que vemos nos governos neoliberais atualmente, que vendem o patrimônio público, Brizola investiu em uma Cedae pública e construiu uma das maiores obras para fazer a água tratada chegar às casas dos mais pobres.
No campo da segurança pública, tema tão caro para o povo negro e favelado fluminense, especialmente em tempos de chacinas cotidianas, Brizola se pautou pelos direitos humanos, proibindo a política de pé na porta sem mandado, a utilização de Águia em operações. Dizia que o preto e favelado deveria ter seus direitos respeitados assim como os brancos moradores do asfalto na zona sul.
Homem de ideias e de ação, Brizola foi exemplo de honradez, competência administrativa e amor pelo Brasil. Dizia-se um empírico. A identidade nacional e o papel central do estado para a emancipação do povo brasileiro eram suas obsessões. Nesse sentido, a importância que depositava na educação como prática libertadora, como também o respeito por tudo que dissesse respeito à cultura popular. Nenhum governante construiu mais escolas do que ele: apenas no Rio, foram mais de 500 Centros Integrados de Educação Pública. Costumava provocar os adversários referindo-se a si mesmo como uma planta do deserto, apta a recobrar as energias vitais diante de qualquer brisa. No centenário desse grande brasileiro, que possamos lembrar que não há salvadores da pátria: cada geração é chamada a transformar sua realidade e deve assumir essa tarefa com lucidez, coragem e paixão.
*Renata Souza é nascida e criada na Maré, deputada estadual (PSOL-RJ), jornalista e doutora em Comunicação. Ibis Pereira é coronel e ex-comandante geral da Polícia Militar. David Gomes é historiador e pesquisador na UERJ, mestrando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ) e diretor da Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ).
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Fonte/Referência: https://revistaforum.com.br/debates/como-plantas-no-deserto/