Luc Boltanski e Ève Chiapello, no livro “O novo espírito do capitalismo”, atribuem um papel importante à crítica. “Ela revela a hipocrisia das pretensões morais que dissimula a realidade das relações de forças, da exploração e da dominação”.
O capitalismo usa estratégias para conter a crítica, ou se dobra a algumas questões levantadas pelos críticos, reformulando-se, possibilitando um certo grau de justiça social. A outra opção é enfraquecer a crítica, esgotá-la, deslegitimá-la, de modo a possibilitar “que o capitalismo afrouxe seus dispositivos de justiça e modifique impunemente seus processos de produção”.[2]
O governo Bolsonaro (que segue um processo que teve sua origem no golpe de 2016) tem a pretensão de estabelecer esta última opção. E um dos instrumentos usados para impedir que uma crítica virulenta contra o capitalismo surgisse foi inundar a esfera pública com o negacionismo.
O negacionismo é uma estratégia para que a crítica não venha à luz, possibilitando que o capitalismo embruteça seu processo de exploração e maximização dos lucros. O negacionismo é a arma ideológica usada pelos conservadores para empreender a uberização da mão de obra, a diminuição dos investimentos no setor público, promover privatizações e outras perversidades do pacote neoliberal.
Como nos ensinou o historiador Reinhart Koselleck, a crítica está relacionada à crise, pois esta nada mais é do que um estado crítico de uma formação social. A partir daí podemos pensar junto com o professor Antônio Cândido, “o que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue”. Essa face humana também foi arrancada do capitalismo por meio da crítica socialista. E o objetivo do negacionismo é exatamente impedir que ela se alastre pela esfera pública.
A crítica surge com o nascimento da esfera pública. A burguesia é sua grande inventora. Ela fazia uso da razão nas conversas em cafés para construir uma opinião pública contrária à estrutura social do Antigo Regime.
Hoje, a mesma burguesia procura conter a disseminação da crítica pois sabe que tal instrumento discursivo pode provocar uma instabilidade na estrutura que criou. Aproveitou-se das tecnologias que dominaram a esfera pública, como as redes sociais, nas quais a informação ou a desinformação se propaga de maneira antes inimagináveis.
Os negacionistas penetram nesta esfera. Praticamente não há punição para as fake news que produzem, já que não são prejudiciais ao sistema. Mesmo com a pandemia e com um suposto aumento do rigor para fiscalizar as falsas informações, pouco se faz efetivamente em relação à impunidade.
Neste projeto de poder, os críticos deixam de criticar o capital e seu enrijecimento, de criticar o mito de que o dinheiro público acabou, sendo assim necessário o teto de gastos (coisa que a Teoria Monetária Moderna pode facilmente desmistificar) e passam a criticar o negacionismo. Neste momento deixa de ser crítica, transformando-se (sem querer fazer injustiça a Hegel e Marx) em mera negação da negação.
As ciências exatas ganham força em detrimento das ciências sociais. Cientistas são convocados para combater o negacionismo. Os sociólogos, historiadores etc. acabam seguindo na mesma direção, pois, já não é novidade, que o capitalismo pautado na produção tecnológica já subordina as ciências humanas às exatas não é de hoje. Até a rigidez da produção acadêmica de humanas arbitrariamente quer se comparar as exatas, em termos de prazo etc. Uma lástima…
Os cientistas, os quais muitos não têm conhecimento da dinâmica da dominação do capital, são chamados para combater o negacionismo. Lembra o recente filme da Netflix, “Não olhe para cima”. Os cientistas que foram à imprensa lutar contra o negacionismo não tinham conhecimento de como o capitalismo funciona em sua relação com o Estado. Quando percebem, já é tarde demais.
O astrônomo Martin Rees, presidente da “Royal Society” e diretor do Instituto de Astronomia de Cambridge, representa bem esse aspecto no mundo real. Em uma situação muito parecida com a do filme, ele mostra seu otimismo ingênuo. “Imagine que astrônomos tivessem rastreado um asteroide e calculassem que atingiria a Terra em 2100, não com certeza, mas com (supostos) 10% de probabilidade. Nós relaxaríamos…? Não acho que seria assim. Haveria um consenso se deveríamos começar agora mesmo e fazer o máximo para encontrar maneiras de desviá-lo ou atenuar seus efeitos”.[3] Em seguida, o cientista rasga elogios às iniciativas perante as questões climáticas de Obama, Bill Gates e Elon Musk.
Em suma, muitos cientistas não possuem conhecimento necessário das relações sociais de produção. Os negacionistas também não.
Esse discurso negacionista se aproveita da situação de crise econômica no qual há uma apatia da classe operária que em muitos casos, para assegurar o emprego, desmobiliza-se. Podemos até dizer que o negacionismo é parte do que Naomi Klein chama de “doutrina do choque”.
Enfim, a esquerda precisa oferecer à classe operária instrumentos para a crítica. Mostrar que ser polêmico não é ser crítico. Que ciência sem a crítica da economia política é tão alienante quanto o negacionismo. É com o pensamento crítico que iremos mudar o mundo.
BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 62.
[2] Id., p. 64.
[3] RESS, M. Sobre o futuro. Rio de Janeiro: Alta Cult, 2021, p. 42-43.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.
Por: Raphael Silva Fagundes
Fonte/Referência: https://revistaforum.com.br/rede/o-debate-entre-negacionismo-e-ciencia-nos-aliena-da-critica-por-raphael-fagundes/